Os Segredos da Casa de Educação Para Recado Madame Blanchet: Entre Exploração e Sobrevivência”
Menina de recado
Psicografado pelo espírito Madame Blanchet
Psicógrafa: Lívia Ikeda
Na sitiada Zona Norte de Recife, Pernambuco, lá pelas beiras de 1798, uma movimentação noturna clareava as ruas e chamava a atenção dos transeuntes. Prostituição, rebeldia, gritaria, baderna, álcool em excesso. Quanto mais se andava, mais se perdia. Pessoas em condição de rua se misturavam com quem passava, fosse homem ou mulher de família, ou não. Enquanto a Inconfidência Baiana soltava seus primeiros gritos, o povo recifense padecia em meio à boemia noturna, nas extremidades da Sinagoga Kahal Zur, em torno à antiga Rua dos Judeus. Mulheres com seus vestidos longos e adornados passeavam bêbadas, agarradas a homens, cujos ternos eram carregados nos ombros. O cheiro fétido de urina, fezes e animais mortos impregnava o lugar, enquanto ratos zanzavam na beirada da calçada e mulheres pariam nos cantos escuros entre as esquinas. Assim eram as extremidades do Recife Colonial, uma verdadeira luta diária pela sobrevivência. Antes de amanhecer, e do Acendedor de Lampiões apagar as lamparinas feitas à base de óleo de baleia, acesas durante a noite, a carrocinha do lixo iniciava seu trabalho, passando pelas ruas e recolhendo entulho de ratadas, fetos em decomposição, corpos de mulheres violentadas e homens que caíam mortos de tanto beber.
Ao som do galo da manhã, Recife acordava e retomava suas atividades, e nesta deixa, um dos primeiros personagens a apontar a rua era a menina de recado. Um trabalho digno à época, sonho de todo pai e mãe vítimas da miséria que assolava a região. A função “menina de recado” era oferecida apenas para meninas entre 12 e 17 anos, com característica obediente, personalidade mansa, confiáveis e de boa aparência – com a maioria dos dentes na boca, sem bolhas de varíola na pele e cabelos alinhados. Mas o oposto também acontecia: havia a chance de reeducar meninas rebeldes demais, a ponto de os pais não darem conta; quando tinham oportunidade, mandavam para as casas responsáveis por educar para recado. Muitas meninas passavam anos em Casas de Educação para Recado, recebendo instrução apropriada para a função e para reagirem com etiqueta à condição de filhas e participantes ativas da comunidade recifense. Eram meninas cuja sorte não as alcançara, filhas de pais pobres, irmãs de muitos outros irmãos. Quando a rebeldia as atingia, seus pais, com medo de perdê-las para a prostituição, enviavam-nas para as casas de Educação para Recado, com a esperança de um futuro menos sofrido. Se a filha fosse boa e obediente, não precisaria passar o ano nas ditas Casas, ia direto para as ruas, trabalhar como menina de recado, e ainda recebia por isso.
Uma parte desse dinheiro era diariamente entregue para os pais, possibilitando, assim, uma ajuda de custo, um pagamento por deixar suas filhas trabalharem para as Casas de Educação para Recado. As meninas podiam visitar seus pais aos domingos e nas segundas-feiras deveriam estar de volta à sua referida Casa, onde as lições eram passadas de forma rígida, ministradas por mulheres que atendiam à etiqueta da alta sociedade da época. Uma das primeiras dessas Casas de Educação para Recado do Recife, e a mais famosa, era a casa de Madame Blanchet, uma francesa refugiada no Brasil, fugida da miséria que os rastros da Guerra dos Sete Anos levaram para a Europa, e da prostituição violenta que as mulheres pobres da França da década de 1760 estavam fadadas a viver. Três anos após sua chegada ao Brasil, fez fortuna atendendo a nata de homens ricos do Recife Colonial e levantou quantia suficiente para comprar o casarão, que mais tarde ficou conhecido como Casa de Educação Para Recado Madame Blanchet. Especializou-se na área, contratou mulheres, sempre as vítimas de violência e da prostituição, reeducou-as com informações sobre pedagogia, língua francesa e etiqueta, formou-as e as qualificou para se tornarem professoras na Casa de Educação para Recado e serem seus braços direito e esquerdo. Ao final dos anos 1700, a casa de Madame Blanchet iluminava a Rua da Cruz, as folhas de jornal, com reportagens faustosas, e os sonhos de mães e pais de meninas, vítimas da miséria e do desmazelo.
Casarão de Madame Blanchet
– Bonjour[1], meninas!
Dizia Madame Blanchet, com sotaque carregado, durante a primeira reunião do dia na grande sala principal da Casa de Educação para Recado.
– Quero que todas prestem muita atenção ao sair na rua. Aqui, na Rua da Cruz, está acontecendo muitos assaltos na parte da manhã; na quadra debaixo, na Rua dos Judeus, uma menina foi encontrada morta ontem à noite, então evitem passar por lá. Andem com seus embornais a tiracolo, na transversal, e só voltem com 35% dos valores que estipulamos para o dia em mãos. Podem ir!
– Não se esqueçam dos cadernos e pontas de tinta, meninas! Vão precisar anotar os detalhes.
Retrucava Professora Izabel, uma das responsáveis pelas meninas.
27 quartos, 30 mictórios, 10 salas, entre elas, uma bem grande, considerada a principal, e uma cozinha também grande, mas nunca organizada: assim poderia ser descrito o Casarão de Madame Blanchet. Uma mulher alta, magra, pele alva, dedos compridos, adornados com muitos anéis, envoltos por luvas de renda branca. Seus vestidos aparentavam sempre muita pompa: grande protuberância na parte traseira, sedas e cetins importados, do mais alto padrão, cores vibrantes de tecido, amarelo ouro, vermelho sangue, sapatos, que ao andar, faziam um barulho peculiar, “Ploc, Ploc, Ploc”, maçãs do rosto muito avermelhadas, mescladas com pó-de-arroz, os cabelos altos e castanhos com penteados complexos e emaranhados – por vezes usava peruca, principalmente no verão, quando a época era de infestação de piolho, com o detalhe dos diferentes chapéus, para disfarçar a presença dos piolhos -, camadas e mais camadas de tecidos por debaixo do saiote, meias-calças brancas, enfim, uma fanca de tecidos, com moldura exata, e muito bem pensada, para disfarçar o cheiro fétido que saía de suas partes íntimas, sua personalidade forte, os berros diários que dava, o semblante rancoroso e as inúmeras mágoas que ainda guardava.
As literaturas de cordéis considerariam Madame Blanchet como uma ode à salvação do povo recifense desse tempo, como foi a Dona Juca, de Gonçalo Ferreira da Silva, que oferecia seu “tabaco” para curar os homens dos males do corpo e da alma. Madame Blanchet ia além: tirava as meninas da rua, oferecendo educação e emprego. Se sua oferta era um modelo de exploração? E isso interessava (?). O que interessava à época era saber que, mesmo diante do machismo coronelista pernambucano, comportamento que imperava no sistema social do colonialismo do século XVII, quando apenas meninos podiam usufruir das grandes oportunidades empregatícias, meninas brilhavam nas ruas com seus vestidos coloridos, sua voz doce, sua educação encomendada e a vontade de se movimentar para ganhar dinheiro. Ao final do dia, 35% de todo esforço realizado eram enviados para os seus pais, que recebiam cada conto com muita exultação. Oportunista ou santa? O importante é entender que, para o povo pernambucano miserável do final da década de 1790, de uma forma ou de outra, ser menina de recado era um trabalho digno e remunerado, o responsável por diminuir o número agravante de meninas entregues à prostituição das ruas de Recife. Pois bem, Madame Blanchet conseguiu o impossível: contratar meninas entre 12 e 17 anos. Seu casarão era recheado delas. Tinha ao menos uma em cada canto das dezenas de cômodos. Meninas tomando lição, meninas cozinhando, meninas se trocando, meninas saindo e meninas entrando. 24 horas de movimentação de muitas meninas, tirando apenas o domingo para descansar.
Era fevereiro de 1798, e Madame Blanchet contava com o total de 10 professoras, 47 meninas e 18 serviçais. As professoras eram responsáveis por ensinar o que já tinham aprendido, lições referentes a como andar sem ser notada, como se sentar e se levantar com graça, como falar com a voz terna e doce, ensinavam lições sobre a geografia da cidade, a ler e a escrever em português e em francês e a memorizar frases. Educação comum à alta elite francesa e que Madame Blanchet fazia questão de reproduzir.
– Eu quero educar meninas para atender […] – dizia, com o seu sotaque francês carregado.
O foco era entregar recados, fosse por escrito ou verbalizado, cada recado tinha um valor: 15 contos de réis, se por escrito, e 20 contos de réis, se verbalizados, quando a menina precisava decorar as frases e repeti-las ao receptor. “As meninas são mais atentas que os meninos, que são naturalmente distraídos”, repetia Madame Blanchet, e vendia essa ideia como um projeto lucrativo.
Menina Elizabeth
Segunda-feira, 4 de fevereiro de 1798. Eram 6h30 da manhã e nada de Elizabeth, Augusta e Cristina aparecerem na grande sala de reuniões para o primeiro contato. Madame Blanchet, professora Izabel, professora Aparecida, professora Anunciação e professora Odete já estavam a postos com a lista dos primeiros clientes do dia. Havia o Conde de Montserrat logo pela manhã, que estava de passagem pela cidade e precisava fechar alguns acordos; o Duque pernambucano Otaviano Abreu, com sua típica pressa e falta de paciência – gostava de ser sempre o primeiro do dia a ser atendido -; Madame Margot, também francesa, grande amiga de Madame Blanchet – esta pedia que apenas as mais velhas, experientes e que já tinham certa afinidade com a língua francesa a atendessem, porque seus recados eram passados sempre em francês –; e o saudoso General Morgado, português rígido da elite militar e que precisava que seus atendimentos acontecessem sempre pela manhã e com urgência.
– Cristina! – gritou Augusta, apressando a amiga. – Ande logo, Madame nos quer à sala agora, sem mais um minuto de atraso. Hoje, temos os “clientes da pressa” nos primeiros horários da manhã.
As meninas costumavam chamar clientes, como Duque Otaviano e General Morgado, de “clientes da pressa”, quando não tinham paciência e nem tempo.
– Já vou, Augusta! Que coisa! Não me apresse, que a coisa não anda, hein? Estava escrevendo uma carta para os meus pais, para Lígia levar até eles hoje, pela noite, porque não conseguirei sair para visitá-los. Tenho os clientes da tarde e à noite, professora Odete preparou umas lições de francês para mim, porque ainda estou com dificuldade… – respondeu Cristina.
– Hum… está certo…! Sem o seu francês, como poderá me ajudar com Madame Margot? – retrucou Augusta.
Ambas levavam a função de recado muito a sério. Sabiam que fora dali, jamais conseguiriam aproveitar outra chance parecida, ainda mais sendo tão pobres. A presença diária no casarão e o trabalho na rua eram o necessário para manter a família de muitas meninas, e ambas, Augusta e Cristina, tinham total consciência disso. As classes mais abastadas da sociedade, principalmente as que batiam ponto na corte, participando dos momentos de licitações, pregões, dos eventos luxuosos que aconteciam todos os meses, requisitavam seus serviços constantemente. Ao aportarem à rua, os donos dos estabelecimentos que ficavam nos arredores do casarão diziam “e lá vão as meninas de Madame Blanchet entregar recado”. Todas as famílias da região inscreviam suas filhas no que podia ser considerado como um típico processo seletivo: elas iam até o casarão, deixavam seus nomes, respondiam algumas perguntas e esperavam uma das meninas irem até suas casas com a resposta quanto à seleção de suas filhas. Após isso, os pais assinavam um contrato acordando que 65% dos valores arrecadados seriam retidos por Madame Blanchet, sobrando apenas 35% para a filha e seus familiares. 20% a família gastava com a estadia das meninas no casarão e o restante era reservado para abastecer as necessidades do lar.
– Desculpe a demora, Madame Blanchet! Esperamos que as primeiras funções do dia não tenham sofrido atraso, – disse Augusta, ao lado de Cristina.
– E Elizabeth, onde ela está? – perguntou Madame Blanchet, já sentada em sua poltrona, enquanto esbaforia a fumaça de seu papelete acoplado à cigarreira de prata que importara de Paris.
– Hum… Nós não sabemos sobre Elizabeth, Madame… Aliás, pensávamos que ela tivesse passado o domingo trabalhando e depois tivesse ido para a casa dos pais… Será que ela não está lá até agora…? – respondeu Cristina, com expressão de susto.
– Quelle absurdité[2]! Onde está a menina? Procurem-na! Ela não me avisou que iria para a casa dos pais! É dela e das duas as obrigações desta manhã! Preparem-se, porque deverão encontrá-la e estarem prontas para sair antes mesmo de 30 minutos! Imaginem, que disparate…! – rebateu Madame, aos berros, saindo da sala nervosa, ressoando o “Ploc, Ploc” de seu salto no assoalho, com o rosto vermelho e a veia da testa saltada.
– Ô, meu Padim Ciço…! – disse Augusta, chorando – Onde estará essa menina? Se ela não aparecer vamos apanhar no lugar dela de novo!
Elizabeth era a grande dor de cabeça da casa. Causava alvoroços numerosos e os fazia de propósito sempre que podia. Odiava estar na casa, ter de trabalhar para custear a vida dura que a família levava e, o que é pior, ser obrigada a andar por toda Recife em troca de centavos. Era uma menina morena, que vivia com seus trajes em farrapos, sempre suja e descabelada. Certa feita, enquanto tomava recados nos arredores da antiga Rua dos Judeus, fora raptada, trancafiada em um calabouço, amordaçada, violentada por horas e devolvida com o pagamento de 12% do valor que deveria ganhar em um dia trabalhado. Como se não bastasse, ao voltar para o casarão, ainda foi culpada por Madame Blanchet aos berros pelo ocorrido, apanhou de vara de bambu, foi dormir e ainda teve que acordar no primeiro horário do dia seguinte para atender os “clientes da pressa”, mesmo com as feridas todas abertas, o corpo dolorido e a febre alta.
– Meu Padim Ciço, acolha minha dor… – chorava Elizabeth na rua. – Acalme minha alma e serene meu coração, eu lhe imploro… não tenho mais alternativas, que não seja continuar fugindo até conseguir sair de vez desta vida… – rezava, antes de chegar aos primeiros clientes. A semana do sequestro fora a pior semana de toda sua vida. Com febre alta, todas as noites daquela semana Elizabeth delirava em sua cama, antes de dormir. Mas não contava nada a ninguém, porque sabia que se contasse, a chance de apanhar seria ainda maior do que a de compreensão sobre as suas dores e feridas. Já não aguentava mais.
Foi no domingo, dia 3 de fevereiro de 1798, a data exata de sua decisão de fuga. Avisou para uma das meninas de recado que iria à Grande Tabacaria, um café onde a alta elite de Recife se reunia. Justificou sua ida dizendo que precisava atender um cliente muito importante, mesmo sendo domingo, porque estava juntando dinheiro para a sua mãe poder comprar uma máquina de costura, pegar encomenda para fora e, quem sabe, permitir que saísse da casa de recado de Madame Blanchet e trabalhasse como sua auxiliar, em casa. Disse, ainda, que após o trabalho, daria uma passada na casa de seus pais. Elizabeth até tentara colocar esse plano em prática, fazendo horas extras durante as manhãs de domingo; fez isso por 3 meses e todo o valor que conseguiu juntar não supriu nem as necessidades da semana. Ela não tinha saída, precisava mentir, para tentar a fuga. Tomou o caminho do café no domingo, dia anterior, para que não houvesse desconfiança. Chegou a entrar no café, mas como era pequena, conseguiu passar por entre os clientes, entrar na cozinha e sair pela porta dos fundos.
O plano era aproveitar o domingo, enquanto a maioria das meninas ou estava voltando para a casa de seus pais ou estava passando o dia brincando na rua, o que eliminaria qualquer desconfiança e a deixaria tranquila. E deixou! Elizabeth executou seu plano com toda tranquilidade possível. Disfarçada com um gorro e um avental que roubara no café, ninguém desconfiou que ela era uma menina de recado, tampouco que era uma das pupilas de Madame Blanchet. Passou despercebida pela Rua do Contorno, atravessou todo o centro, desceu ao cais, subiu em um dos navios aportados e esperou agachada em um canto, em silêncio e escondida, pela próxima viagem.
A falsária Madame Blanchet
– Madam, Madam! – gritaram as meninas, em coro, em francês e na direção de Madame Blanchet. – Não conseguimos encontrar Elizabeth! Ela não está em lugar nenhum! – responderam, com as mãos unidas em gesto de piedade, enquanto choravam e fungavam, com muito medo de serem as próximas vítimas da vara de bambu.
– J’y crois pas[3]! – respondeu Madame, furiosa. – São duas imprestáveis, mesmo! O que eu faço com vocês? – berrava, com raiva, com as professoras ao lado, tentando acalmá-la. Sentou-se em sua poltrona, enquanto os serviçais a abanavam com um grande leque de mão, ao mesmo tempo em que apontava o dedo para as duas e entoava, aos berros:
– Vocês vão me pagar por esse sumiço! Se ela não aparecer até hoje à noite, vocês sentirão uma dor que irá além da vara de bambu! Eu vou acabar com a raça de vocês! Je te tu[4]! – contrapôs, já muito vermelha e quase tendo um piripaque.
– A senhora vai infartar desse jeito, Madam! – disse Professora Eduarda, enquanto fazia um leque imaginário com as mãos e gestos de abano em direção à Madame Blanchet. – Seu coração não vai aguentar!
Madame Blanchet era exultada na comunidade recifense da época. Sua imagem fazia bem aos negócios. Ela era convidada de honra de todos os eventos da região. A grande elite do estado a presenteava sempre com muitas joias, caríssimas, por sinal, vestidos, sapatos, cigarreiras de ouro e prata, que vinham de inúmeras viagens a diferentes países do mundo, e oportunidades de entrevistas para jornais de todo canto do Estado de Pernambuco. Madame Blanchet era considerada um achado pela elite da época, um personagem peculiar que tinha total capacidade de elevar ainda mais seu prestígio, poder e influência diante da corte e da comunidade colonialista. Era requisitada em absolutamente todos os eventos, porque travava acordos, tinha influência com a comunidade menos abastada, graças ao seu projeto social de acolhimento e treinamento e, principalmente, por conhecer a fundo, e intimamente – até demais -, todos os grandes duques, condes e coronéis da sociedade recifense e de muitas outras cidades pernambucana. Apenas a sua presença era capaz de convencer, quiçá uma conversa bem elaborada. Suas meninas faziam o trabalho duro e ela ficava com os louros da vitória.
Ao mesmo tempo em que digladiava com Augusta e Cristina, era abanada por um grande leque pelos serviçais do casarão, e pelo leque imaginário formado pelas mãos de Professora Eduarda, Madame Blanchet respirava alto, ficava cada vez mais vermelha, esbravejava xingamentos em francês, enquanto sua veia permanecia saltada à pele da testa.
– Vocês vão me arruinar desse jeito… Se essa menina não for encontrada, ela pode dar com a língua nos dentes e contar como tudo tem acontecido… – dizia Madame Blanchet, chorando, enquanto imaginava Elizabeth abrindo a boca para falar sobre os inúmeros trambiques, desfalques, mentiras, extorsões e atitudes ilegais praticados por ela nos últimos anos. Elizabeth já tinha 17 anos. Os pais a entregaram para a vida no casarão aos 12. Nesses 5 anos, Elizabeth aprendeu muita coisa, entre ações positivas, que certamente a elevariam quando pudesse sair de lá, como ter aprendido a falar francês e as inúmeras aulas de etiqueta que reteve. Da mesma maneira, também aprendeu todos os segredos que podia, a exemplo dos manejos para tirar valores além dos que a elite já lhe pagava pelos serviços de menina de recado ou o melhor jeito de passar a mão por debaixo dos paletós dos duques, condes e coronéis, e das fancas de tecido das saias das madames, para roubar-lhes as moedas de ouro, guardadas nos fundos falsos de suas vestimentas. Tudo isso era passado por escrito e ensinado por Madame Blanchet. Elizabeth guardava os cadernos com anotações e assinaturas da matriarca, o que poderia, e muito bem, constar como uma grande prova contrária às suas ações sociais reconhecidas pela sociedade recifense. Esta era apenas uma das centenas de provas que Elizabeth, a menina de recado mais antiga do casarão, retinha.
Já se passavam das 15h30, quando uma menina de recado, de uma outra Casa de Recados, aportou em frente ao casarão de Madame Blanchet, trazida por uma carruagem e acompanhada por outra madame.
– Ô, de casa! – gritou a menina do portão. – Venho trazer notícias de uma de suas meninas!
Eram notícias de Elizabeth, encontrada junto a um navio de carga. Ao chegar à embarcação, a menina decidiu ficar agachada, em silêncio, ao lado de cargas de madeira, encomendadas pela corte do Rio de Janeiro, que deveria sair no mesmo dia, para desembarcar na corte carioca em, no máximo, 3 dias. Seu plano estava dando certo. Após algumas horas de espera, ouviu o barulho da buzina, avisando que o navio de carga estava pronto para zarpar. De um cantinho da Praça de Máquinas, lugar do navio onde fica instalado o compartimento a vapor, responsável por fazer o navio zarpar. Assustada, cansada, sem entender onde estava e onde deveria ficar, Elizabeth pegou no sono e se deitou bem ao lado do compartimento à vapor. No dia seguinte, e por uma grande coincidência, encontraram-na, já gelada e com o corpo endurecido.
Elizabeth morrera de inanição, mas antes de sucumbir ao descanso imposto, a grande vítima do azar de uma vida miserável, escreveu, em português, algumas linhas de confissões. Redigiu seu cansaço, seus aprendizados, todos os momentos ilegais que vivenciou a mando de Madame Blanchet, seus momentos de dor, de abusos, especificando os estupros que havia sofrido nas ruas dentro de seus 5 anos de servidão, os valores ínfimos que sua família recebia em troca, o que a tornara escrava de Madame Blanchet, escreveu sobre os dias de febre alta e o quanto apanhou sob a acusação de preguiça e indolência. Foi encontrada com a carta na mão. Perplexa, Madame Blanchet chegou ao cais em frangalhos, respirando alto, ao lado das professoras Eduarda e Izabel, e as meninas Augusta e Cristina, que vieram correndo logo em seguida. Madame Blanchet não teve nem tempo para justificativas, foi presa quando subiu ao navio. A Casa de Educação Para Recado Madame Blanchet chegara ao fim.
[1] Palavra em francês. Tradução: bom dia.
[2] Frase em francês. Tradução: Que absurdo!
[3] Frase em francês. Tradução: Não acredito!
[4] Frase em francês. Tradução: Eu mato vocês!
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