“Espantos Para Uso Diário”- Mario Baggio
Diferente da maioria das vezes em que, ao ler, descubro o real significado do título mais ao final da leitura, com essa foi diferente. Porque logo no primeiro conto já abri uma feição de espanto!
Mario nos guia às avessas, numa narrativa que apresenta os excessos de situações rotineiras (infelizmente), trazendo uma crítica inteligente de não apenas dar nome a eles, como também
redescobrir seus significados.
Além desse humor ácido e astuto – que realmente nos pega desprevenidos -, neste livro descobri uma das mais lindas formas do dizer sem dizer, pois ele fala até por entre os silêncios. E não exatamente formando um caligrama – em que há uma combinação artística da linguagem escrita formando elementos visuais -, mas a linguagem aqui também atua além da forma escrita, sendo arte não visual, mas leitora. Entendemos a mensagem em seu não dizer também, e é muito forte.
Um exemplo é nesse conto “Mulher narra (relato em que as palavras não chegam; quando chegam, não bastam)”, um dos que mais mexeu comigo. Nele somos apresentamos à uma narrativa em primeira pessoa, em que a mulher narrando é vítima de violência sexual. No texto corrido, todas as frases são inacabadas – como se faltasse o final
propositalmente -, para o leitor presumir sem deixar a violência explícita.
E para nós, mulheres, acredito que seja mais forte ainda. Pois a cada vez que temos certeza do que ela está falando, é um silêncio nosso sendo exposto também. Outro exemplo, numa situação parecida, é no conto em que a mulher acaba por ser vítima de violência também, mas é vencida pelo sangue, que consome não só ela, mas todos em sua
volta – que podem representar quem julga, por isso o medo e vergonha de contar quando acontece. E ele termina com a frase “Ela morreu de vergonha”, traçando um paralelo com o sentido literal.
Esses são os que mais mexeram comigo, talvez pelo fato de estar mais sensível ao tema – já que também estava lendo “É Assim que Acaba”, que retrata sobre violência doméstica e os questionamentos/carga que a mulher toma para si, além de amar. Mas há diversas temáticas intrigantes e interessantes de serem pensadas.
Um último exemplo, até um pouco cômico, é num conto em que um homem, talvez em estado depressivo, vai até a cozinha e encontra outro homem, que ele presume ser um astronauta; mas este homem diz que não, mas que ele morava na sala; então o primeiro homem se elucida dizendo “não sabia que existia vida na sala” – o que pra mim sucedeu outro paralelo com o fato da vida estar perdendo espaço na rotina e ambiente dele, por conta
da doença. É uma leitura de pancadas surpresa.
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Q U O T E S :
“Fiquei sozinha e chorei sobre. Ainda me custa encontrar as palavras para. Ainda não consigo entender o que. Ainda não sei explicar tanta.”
“porque os que se supõem vivos na verdade há tempos já morreram. Caminham, comem, respiram. Mas estão mortos”
“ESTAVA NA COZINHA PREPARANDO ALGO PARA COMER quando ao meu lado apareceu um sujeito estranho, a quem nunca tinha visto. Perguntei se vinha do além ou do espaço sideral, pois sou daquelas pessoas que creem no além e em vida no espaço sideral. O estranho ser me disse que vinha da sala de estar. Ah, quer dizer que existe vida na sala de estar?, pergun-tel, espantado. Sim, respondeu o ser esquisito, convidando-me a acompanhá-lo.”
“DEPOIS DA ÚLTIMA DISCUSSÃO, decidi pôr um ponto final em nossa crise conjugal. Foi o que aconteceu. No começo não soube o que fazer com o corpo.” “A mulher estava morta de vergonha, contaram”
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Essa obra tem tons cômicos, traz críticas relevantes e sincera