NOTÍCIAS REVISTA LITERATURA 

ELEGÂNCIA EM “SILHUETA FLUIDA”, DE SUZANA JORGE

por Luiz Otávio Oliani

por Luiz Otávio Oliani

 

 “nem só de pão viverá o homem
mas de toda palavra que sai da boca da arte”

Suzana Jorge, p.80

 

A voz feminina está em alta, (sendo eu, autor desta resenha, o único intruso neste espaço, tendo em vista a quarta capa e o prefácio terem sido redigidos por mulheres – fato maravilhoso!), o que comprova “Silhueta fluida”, 1ª edição, Rio de Janeiro, 2024, Edição da Autora, o terceiro livro de poemas da professora e escritora Suzana Jorge.

Na quarta capa, ora intitulada de “A poesia livre e plural de Suzana Jorge”, a também docente e escritora Celi Luz enaltece a “afirmação do desejo em linguagem solta”. Isto é, não há amarras nem mordaças, como pede a boa literatura.

Suzana escreve sobre o que deseja, sobre os temas que lhe são caros, por mais difíceis que sejam, pois sabe fazê-lo.

Celi prossegue ao ratificar a presença da “diversidade de formas e de abordagens em poemas e prosa poética”. A seguir, vai além ao citar que tal poesia bebe da metalinguagem e da intertextualidade. E isto só ocorre pelo fato de a autora ser uma estudiosa da língua e das literaturas. Afinal, para desconstruir o que existe, é preciso conhecer o cânone, a tradição.

Professora do vernáculo, Suzana Jorge traz para a literatura o conhecimento da mestra, incorporando-o à vocação da escritora.

Já no prefácio, da também professora e poeta Mônica Jogas, existe um breve estudo sobre as quatro partes que compõem a obra. Importante dizer que Mônica enaltece a importância da intertextualidade como um meio de comunhão e afeto com pares literários e nomes da música popular brasileira, sejam vivos ou mortos. Assim, o discurso do outro serve de inspiração para quem quer que seja.

O que chama a atenção nas quatro partes que compõem o livro é a ousadia linguística, a criação de neologismos ou cruzamentos vocabulares. À vista de um leitor despreocupado e de pouco conhecimento lítero-gramatical, as seções teriam desvios da norma culta. Todavia, estes não existem. É a licença poética com “substânsia”, uma mistura de substantivo, ou mesmo de substância, com ânsia. Na sequência, “madurez”, “grávida das palavras flutuantes” e “proesia”, o que sugere a mistura da prosa com a poesia.

Não cabe aqui uma análise exaustiva de todos os poemas do volume (o que é impossível), mas sim um apanhado mínimo de alguns textos julgados extremamente significativos.

Sobre a primeira parte do livro, o neologismo “substânsia” inaugura a multiplicidade de sentimentos e metapoemas expostos na seção.

Em “vestidos de gala”, p.21, o próprio título confirma a presença de intenso campo semântico de palavras: “renda”, “forro”, “bainha”, “paetês”, “barra”, “corpo”, entre outros vocábulos.

Já em “a m a n h ã n o p a r q u e”, p.22, todo poema foi construído por meio de conjunções subordinativas condicionais. A hipótese é o que margeia o texto, aberto com bela prosopopeia: “a manhã desce sobre o parque bocejante //ah, se toda sujeira do mundo / fossem folhas errantes”.

Há plena metalinguagem em “mantra”, p.24. A propósito desse texto, exaltem-se os jogos de palavras, as intensas metáforas e o uso dos adjetivos de forma não gratuita. Trata-se de poema primoroso, em que a linguagem literária alcança os píncaros da conotação: “um verso é o que é: matéria vulcânica / átomo que raspa a crosta terrestre / (…) / ignora a geografia tectônica / e sucumbe insolente / por entre os tremores – temores / dos horrores humanos”.

“bala perdida”, p.27, é crítica social pura.

“estado de graça”, p.30, traz trocadilhos e jogos linguísticos, sendo quase um poema concreto. O advérbio “quase” se dá em razão de não brincar o texto com o espaço em branco da página.

Na segunda parte do livro, ressaltam-se a intertextualidade, os jogos  linguísticos e a intensa celebração de epígrafes com versos de poetas, romancistas, entre outros, além de temas comuns.

A maturidade aparece com as relações amorosas, as alegrias e as tristezas que os casais enfrentam na vida diária.

E, se “amar é a única coisa urgente”, como alardeado em “turbilhão”, p.32, eis que Suzana Jorge ama as palavras.

O texto “ao lado de maria”, p.52, é, por sua vez, uma flagrada intertextualidade com o clássico poema romântico “Meus oito anos”, de Casemiro de Abreu.

Há criatividade extrema em “intertextuviagem”, p.65, quando escritores tornam-se personagens do poema, como na estrofe final: “silencio: / chegou-me agora/ josé lins menino / de engenhos e palavras”.

Novo diálogo aparece em “campos do sem fim”, p.68, ao reverenciar Adélia Prado, uma das grandes vozes da literatura nacional, recentemente galardoada, em junho de 2024, com o Prêmio Machado de Assis, da ABL, e o Prêmio Camões.

Em “avenidas frescas”, p.61, a linguagem metafórica encanta: “abrem-se à luz da língua / ruas de carne e ferida /  imensamente curtas”, mostrando a imensa carpintaria verbal da autora.

Lindo é o poema “tarde klara”, p.76,  no qual Suzana Jorge homenageia a poeta e também editora da obra, Klara Rakal, com outra bela intertextualidade.

“divinos conflitos” homenageia Viviane Barroso, poeta já falecida, cujo único livro é homônimo do texto em destaque. Assim, a poesia alheia foi o mote para Suzana Jorge.

“modernismos”, p.81, alude a “Os sapos”, poema de Manuel Bandeira, apresentado na Semana de Arte Moderna.  A linguagem é trabalhada por meio de trocadilhos, como ” depois que os sapos / coaxaram” e ” os sapos / co / acharam / o salão”. Outras referências são feitas a João Cabral de Melo Neto, a Clarice Lispector, a Vinicius de Moraes, até a Oswald de Andrade, em face do famoso poema das meninas da gare; além das endereçadas a Pablo Neruda e ao autor de Os Lusíadas, Luís Vaz de Camões. Por fim, a incursão dos versos livres e dos versos brancos, que soterraram os parnasianismos dos sonetos rimadinhos.

Em “rosa pascal”, p.85, o mineiro de Itabira mais famoso,  Carlos Drummond de Andrade, é lembrado com citação à obra “A rosa do povo”. Tal referência ao poeta também aparece nas epígrafes de “garanto que um poema nasceu” e de ” sucata humana”, páginas 86 e 87.

Clarice Lispector recebe várias homenagens, incluindo poema que quase leva o nome da escritora, isto é, em “clarice lispectro”, p.88. Por meio da linguagem plurissignificativa, dá-se a pura poesia. Referências ocorrem ao livro “Perto do coração selvagem” e às características da obra da autora, como a epifania, a fluidez do inesperado e  o jogo das entrelinhas, pois, ao ler Clarice, é preciso mergulhar na mensagem subliminar do texto.

Enquanto “fermentação”, p.91, com epígrafe de Ferreira Gullar, dialoga com o famoso poema das peras que apodrecem, “resgate”, p.94, alude ao susto que a poesia deve provocar, conforme  declarado pelo próprio poeta.

A última seção do livro, “proesia”, traz a mistura de prosa e poesia, bem ao gosto dos modernistas que buscaram construir uma atmosfera altamente expressiva e emocionalmente impactante no que se configurou a prosa poética.

Por fim, “silhueta fluida” é um livro para ser lido gradativamente, a fim de que a pressa não prejudique a absorção de cada texto primoroso, de toda palavra em voga.

 

**LUIZ OTÁVIO OLIANI é professor e escritor. Publicou 21 livros, incluindo poesia, conto, teatro, literatura infantil e crítica literária / ensaios.

 

Related posts