CULTURA LIVROS E AUTORES REVISTA LITERATURA 

CAOS E DESORDENAÇÃO NA POESIA DE ROGÉRIO BERNARDES, OU A POESIA A SERVIÇO DA HUMANIDADE

Luiz Otávio Oliani

por Luiz Otávio Oliani

“deus não ouve  / sonetos /
nem conta sílabas / dos gritos / durante guerras”
Rogério Bernardes

O título “deus e outros ópios”, é o oitavo livro de poemas de Rogério Bernardes, uma publicação que saiu em Goiânia pela Mondru, 2023.
A grafia do título com letras minúsculas diz muito. É como se  houvesse a desumanização de deus, tido como menor, em contraposição ao uso de Deus, com maiúscula, na representação simbólica do ser onipotente, onipresente e onisciente.
Isto porque, no autógrafo / dedicatória do autor para este que faz a resenha desta obra em voga, temos que: “Deus maiúsculo é Amor, Tolerância, Diversidade, Esperança e Poesia. Todo o resto é apenas ódio disfarçado de ópio.”
E é verdade, pois a literatura parte de tentar  recompor o caos, já que não traz respostas prontas a nada. A arte da palavra apenas fomenta, incita as dúvidas inerentes ao ser.
Na quarta capa à obra, a jornalista Simone Bacelar enfatizou que a poesia de Bernardes “(…) reflete as nuances da experiência humana, desde as mais luminosas epifanias até os abismos mais sombrios da psique.”
O poema de abertura “um delírio”, p.14, traz um olhar de crítica social para diversas inversões ou quebras de modelos inaceitáveis na vida em grupo.  Deus estaria também “(…) na arma descarregada / nas fuças daquele que furtou / de tanta fome”? Ou “também / o chicote no lombo / da mulher descoberta / que lia até nabokov”?
Aqui, o furto famélico e a leitura são vistos como crimes. E desde quando ler seria um ato atentatório à dignidade? Em que pese a excelência do russo Vladimir Nabokov,  “Lolita” é o clássico que vem à mente.
Outro texto que surge à consciência é o emblemático “Ler devia ser proibido”,de Guiomar de Grammont, no qual a autora defende o direito à leitura, por meio da logística reversa.
Segue o mesmo poema com os versos “também / o cuspe atirado da boca / que xinga e ameaça e assina / decretos nada discretos”, com alusão ao poder institucional que esmaga os mais humildes, em relação de sufocamento.
No trecho “cria [ até para  destruir] / teu próprio criador / tua mentira mais verdadeira”, as fake news aparecem como uma praga da comunicação pós-moderna, no mundo da IA e da manipulação das informações.
No segundo poema “seis vezes seis vezes seis”, p.17, a poesia denuncia “mães renegadas” em busca de alimentos aos órfãos, representando a infância desguarnecida e aqueles “messias / sem o engodo de armas e bravatas” que se valem de artimanhas políticas para “dilacerar esperanças “.
A figura divina centra o amor em si e o respeito entre as diferenças.  Neste sentido, “corpos-sentidos”, p.18, é um poema agregador.
Ao tratar do respeito, fundamental em qualquer relação humana, a estrutura das três primeiras estrofe é de um pronome possessivo, um substantivo, um verbo e um sintagma. Assim, nacionalidade e identidade de gênero sobressaem nesta parte, quando o eu lírico assina: “meu olho é da síria / meu nariz é da palestina ,// (…) / minha visão é gay / meu olfato é trans  / meu paladar é mulher / minha audição é negra, / meu tato é indígena,”, ao mesclar os órgãos dos sentidos.
Apenas estes versos revelam o gigantismo do poema. Dissecá-lo tiraria toda a beleza do poema que só se materializa com o olhar dos leitores.
A crítica à falsa religiosidade aparece no poema “pedro pondera”, p.20, todo marcado por aliterações do fone bilabial / p / e pelo sibilante / s /.
O social é o forte deste livro com imagens altamente metafóricas e capazes de denunciar uma realidade .
Em “justaposição”, p.24, os versos finais do poema são uma porrada: “viver é um estômago cheio um corpo / cheiroso de sabonete bom uma piscina / de águas sem ratos um contrato de trabalho / uma utopia um sonho branco uma justiça que não veio.”
O rio contaminado e os efeitos desta ação nefasta aparecem em “délhi”, p.54, porque “(…) as mulheres não tecem / mais as cores / e o rio contamina lágrimas / e o rio suja corpos / intoxica a fé / nas deidades / entre as espumas.”
A guerra Rússia versus Ucrânia é tema de “os céus e os chãos”, p.34, mas a temática persiste no texto da página seguinte, “à espera do fim da guerra”. Por isso, em “trindade”, p.41, o eu lírico faz “uma curta oração / para deus nenhum”.
Em um livro como este, libelo pela liberdade plena e pelo amor, a linguagem litúrgica se mistura aos versos do poeta em fantásticos arroubos literários. Em “as esferas menores”, p.44, temos: “(…) /  não há orações para mim / no limite entre fé / e fétido (…) // [bendito é o fruto / de vosso ventre ] // não há céu para mim / (…) “.
O trabalho de carpintaria verbal aparece em todos os textos.  Há  o extremo cuidado com a linguagem literária, seja pela escolha das palavras e campos semânticos e rimas, seja pela presença das figuras de linguagem.
Bela metáfora surge em “a desilusão de um povo / é um presépio / às avessas”, em “o riso de belchior “, p.22.
Outra metáfora encantadora é: “todo silêncio / é um conjunto molhado / de orações às avessas”, em “[des]credo”, p. 61.
Salta aos olhos a prosopopeia: “palavras trincadas / só rimam com silêncios / e assim sobrevivem” em “oração com espelho dentro”, p.64.
Todavia, em uma escolha aleatória, em “céu ateu”, p.52, é possível perceber a dicotomia entre ter fé e não ter fé, ser agnóstico ou não.  Os vocábulos ou expressões “ateísmo”, “o deus das grandes guerras”,”o deus das pequenas tréguas”,”o sinal das preces” revelam “o deus por quem não morremos.”
“inquilinato”, p.57, é um poema que valoriza a liturgia de Adão e Eva, por meio de imenso trabalho linguístico. Nota-se o campo semântico inerente: “homem”,”barro”,”costela”, “maçã”,”serpente”, “mulher” e “paraíso”.
A Bíblia, o Livro Sagrado, é peça fundamental citada em uma obra que trata sobre deus e outros ópios. Em diversos poemas, aparece. Chama a atenção nos versos fundos de “no sabugo”, p.59:  “no sabugo / se lê melhor deuteronômio 21:12 // mas no fundo elas sabem // : // as cores que as putas podem / são sempre as mais bonitas.”
E é com o desejo de vomitar o mundo em “um rosário de atalhos”, p.87, que se inscreve a poesia de Rogério Bernardes.


 *LUIZ OTÁVIO OLIANI é professor e escritor. Publicou 19 livros, incluindo poesia, conto, teatro,  literatura infantil e crítica literária/ ensaios.

 

Related posts